Matheus Borges Kauss Vellasco1
A proteção do meio ambiente é um tema de urgência global. No Brasil, a Constituição Federal de 1988 elevou o direito a um meio ambiente equilibrado ao status de difuso, programando de forma inequívoca uma demanda de preservação. No plano infraconstitucional, em 1998 sobrevém a Lei de Crimes Ambientais, despontando como uma das protagonistas desta tutela jurídica. Contudo, a experiência em casos ambientais de grande repercussão ocorridos no Brasil nas últimas décadas tem revelado a inadequação e insuficiência do Direito Penal para lidar com a complexidade desses eventos. Diante desse cenário, a Justiça Restaurativa emerge como uma potencial ferramenta de grande valia, capaz de complementar ou até mesmo substituir a persecução penal tradicional.
Os Desafios do Direito Penal em Casos Ambientais Complexos
As críticas ao intitulado Direito Penal ambiental são, em sua maioria, procedentes. No plano legislativo, observam-se dissonâncias com princípios fundamentais da dogmática penal. Basta observar os efeitos da chamada “administrativização”2 do Direito Penal em matéria ambiental, com a “transformação” de atos administrativos em conteúdo do injusto penal, além de um excessivo uso de normas penais em branco e a ampla utilização de conceitos indeterminados na redação dos tipos3. Também a possibilidade de responsabilização penal das pessoas jurídicas, outrora muito questionada, mas atualmente aceita pela jurisprudência, ainda enfrenta lacunas processuais significativas4, principalmente por não ter havido uma adaptação legal do processo penal brasileiro às suas peculiaridades.
Este cenário prenuncia os desafios de concretização do Direito Penal ambiental mesmo em casos ordinários. Ocorre que, em determinadas hipóteses, as dificuldades são consideravelmente agravadas. É que as nuances fáticas dos casos ambientais complexos5 criam obstáculos dogmáticos e processuais quase intransponíveis para a aplicação do Direito Penal. A individualização de condutas em organizações e empreendimentos que envolvem dezenas ou até centenas de pessoas em posições de protagonismo é uma tarefa muitas vezes inalcançável, especialmente quando a cadeia causal do evento é longa e composta por ações que se relacionam entre si. A delimitação da causalidade jurídica, particularmente em crimes omissivos impróprios, e a identificação (e comprovação) do elemento subjetivo também despontam como obstáculos quase intransponíveis.
Essa dificuldade pode levar a processos “natimortos” ou a condenações pautadas por uma responsabilização penal objetiva, o que viola garantias fundamentais. Em meio ao clamor popular e à pressão midiática em cenários de crise, há um risco real de flexibilização indevida das garantias processuais em busca de uma “resposta” rápida à sociedade, que, muitas vezes, mascara um abuso do poder punitivo e cria uma pretensa solução meramente simbólica6.
Pior do que isso: não bastasse a ineficiência para contemplar os fins aos quais se propõe, esta equívoca utilização do poder punitivo acaba por desviar o foco e o direcionamento de esforços para ações que poderiam, verdadeiramente, ter função reparadora e preventiva7.
Por fim, nota-se que também em outras searas há percalços significativos para alcançar um desfecho resolutivo, principalmente associados a uma não participação efetiva das vítimas diretas e indiretas dos acidentes e ao longuíssimo tempo necessário para a celebração de acordos ou execução das obrigações judicialmente determinadas.
Justiça Restaurativa: Uma Interseção Necessária e Promissora
É nesse contexto que a Justiça Restaurativa desponta como ferramenta promissora. Seus princípios estruturantes, aplicados a este grupo de casos, garantiriam um enfoque na reparação e prevenção dos danos ambientais, bem como nos anseios e necessidades das vítimas individuais e das comunidades envolvidas.
Diferentemente do sistema penal tradicional, cujos olhos estão direcionados a condutas pretéritas com vistas à imposição da pena, a Justiça Restaurativa se propõe a mirar o presente e o futuro. Ancorando-se na participação ampliada dos atores envolvidos – autor, vítima e comunidade –, busca-se a satisfação das necessidades dos envolvidos por meio de um processo voluntário8, sendo fundamental que as demandas de preservação ambiental, embora não se refiram a uma vítima individualizável por conta da natureza difusa do meio ambiente, sejam incluídas no processo restaurativo como parte imprescindível.
Ferramentas Processuais de Concretização no Ordenamento Brasileiro
O ordenamento jurídico brasileiro já oferece ferramentas que podem concretizar a Justiça Restaurativa. O Acordo de Não Persecução Penal (ANPP), previsto no Art. 28-A do Código de Processo Penal, é um instrumento de potencial efetividade. O ANPP abrange a maioria dos delitos ambientais e privilegia a reparação do dano, dispondo de ferramentas aptas a direcionar recursos compensatórios diretamente às vítimas e entidades que se dedicam à proteção do meio ambiente. Mais importante, a prerrogativa de estipular condições inominadas permite, por exemplo, a inclusão de uma investigação técnico-científica independente, focada na identificação das causas e na prevenção de novos acidentes.
Ainda no âmbito do ANPP, pode-se pensar em uma interpretação combinada – e extensiva – com o art. 44 do Código Penal, que permite a substituição da pena privativa de liberdade por restritivas de direito em crimes culposos independentemente da pena, a fim de ampliar o seu alcance. Uma outra possibilidade seria a celebração de Termos de Ajustamento de Conduta (TACs) que emanem efeitos penais.
Estas duas alternativas ainda demandam um desenvolvimento dogmático específico no âmbito da doutrina e da jurisprudência, mas, de todo modo, considera-se positivo o aprofundamento em relação a quaisquer possíveis soluções negociais que privilegiem ações restaurativas em casos ambientais complexos, notadamente por conta do seu superior potencial de rendimento em comparação às “soluções” propostas no âmbito criminal.
Conclusão
O Direito Penal não dispõe de ferramentas suficientes para uma resposta jurídica adequada a casos ambientais complexos. A Justiça Restaurativa, com foco na reparação, prevenção e no envolvimento ativo de todos os afetados, representa uma alternativa (ou ao menos um complemento) promissor. Adotar essa perspectiva significa buscar soluções mais efetivas e justas, que verdadeiramente protejam o meio ambiente, atendam às necessidades das vítimas e garantam os direitos fundamentais, afastando o risco de condenações indevidas e processos ineficazes. É tempo de avançar para um modelo de justiça ambiental que não tenha em sua base um parasita que se alimenta de funções ilusórias e metas incoerentes com seus métodos, mas que, ao contrário, almeja metas primordialmente voltadas à prevenção e, quando esta não for suficiente, uma reparação tão efetiva e imediata quanto possível.
- Doutorando e Mestre em Direito Penal pela UERJ. Especialista em Direito Penal Econômico e teoria do delito pela Universidad Castilla-La Mancha. Bacharel em Direito pela PUC-Rio. Advogado e sócio do escritório Paulo Freitas Ribeiro Advogados Associados. E-mail: matheusborges@paulofreitasribeiro.adv.br.
- José Danilo Tavares Lobato, ‘Perspectivas da Teoria do Delito em Tempos de Crise. Anatomia do Crime’ (2019) 9 RCC 97.
- Alessandro Baratta, “Funções Instrumentais e Simbólicas do Direito Penal: Lineamentos de Uma Teoria do Bem Jurídico” [1994] RBCC.
- Helena Regina Lobo da Costa, ‘Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica’ em IBCCRIM, 25 anos IBCCRIM (D’Plácido 2017) 91,108. Também: Luís Paulo Sirvinskas, Tutela Penal do Meio Ambiente (4ª ed., Saraiva 2011) 102.
- Convém esclarecer ao leitor o que se quer dizer a com a nomenclatura de “casos ambientais complexos”, o que será feito a partir de de alguns vetores específicos. No que se refere ao fato gerador, envolvem acidentes ocorridos no bojo de um empreendimento econômico, o qual é gerido por uma ou mais empresas, no presente ou no passado, caracterizado pela execução de atividades que carregam consigo um risco ambiental inato, ainda que permitido e regulamentado. Em relação ao impacto e às consequências, geram um dano ambiental de grande monta e comumente atingem comunidades cuja subsistência está direta ou indiretamente relacionada aos recursos naturais afetados pelo acidente. A respeito do exame de causalidade, são aquelas que apresentam explicações multifatoriais, especificamente pela longa extensão da cadeia causal que envolve o projeto, a construção e a operação da estrutura, bem como pelas suas nuances técnicas, ostentando, especialmente por isso, robusta dificuldade nas investigações periciais sobre a origem do acidente. Por fim, no que toca à gestão e operação dos empreendimentos, observa-se uma pluralidade de agentes em posições de decisão técnica ou executiva, gerando significativa fragmentação do processo decisório, o qual perpassa distintas (e específicas) questões técnicas e executivas, havendo, ainda, a intervenção do Poder Público, sobretudo no âmbito de licenciamentos ou atividades de fiscalização.
- RODRÍGUEZ MESA, Mª José. Las razones del Derecho penal. Revista Electrónica de Ciencia Penal y Criminología, n. 09-10, dez. 2007. Disponível em: http://criminet.ugr.es/recpc/09/recpc09-10.pdf
- ZAFFARONI, E. Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 2011, p. 77.
- Rego OC, ‘Por Uma Justiça Restaurativa Socioambiental no Brasil’ (2022) JR UEPG: CSA 1-13. Disponível em: https://revistas.uepg.br/index.php/sociais/article/view/17854