Mariana da Silva França de Oliveira1
O direito à prova como expressão da presunção de inocência, do contraditório e da ampla defesa
O Código de Processo Penal brasileiro oportuniza ao acusado o direito de requerer diligências probatórias que julgue pertinentes à sua defesa, como se observa no art. 396-A, por ocasião da resposta escrita à acusação, e no art. 402, ao final da instrução2. Essa prerrogativa reflete o reconhecimento, pelo legislador, da centralidade da prova no processo penal e da necessidade de garantir à defesa meios efetivos de influenciar a formação da convicção do magistrado.
Não se desconhece a discricionariedade do julgador em indeferir provas que considere impertinentes, irrelevantes ou protelatórias. Contudo, o exercício dessa prerrogativa tem acarretado sérias implicações à luz dos princípios da presunção de inocência, do contraditório e da ampla defesa, notadamente quando a ausência de provas capazes de instaurar dúvida razoável à tese acusatória, cuja produção foi negada, é posteriormente utilizada para justificar a condenação do réu ou a exasperação da pena-base, configurando evidente contradição lógica e violando frontalmente as garantias processuais e constitucionais do acusado.
O problema das decisões contraditórias
Por vezes, deparamo-nos com decisões judiciais que indeferem diligências probatórias sob o argumento de que o prejuízo ou a quantificação do dano seriam irrelevantes para a tipificação de determinados delitos. Todavia, observa-se que, posteriormente, esses mesmos elementos: presumido prejuízo ou extensão do dano, considerados irrelevantes para justificar a negativa de prova, acabam servindo de fundamento para a exasperação da pena-base.
Tal prática desnatura a lógica do processo penal e afronta o princípio da ampla defesa, uma vez que o acusado é condenado e tem sua pena aumentada justamente pela ausência de provas cuja produção lhe foi negada.
Nesse contexto, ainda que se reconheça que o magistrado, como destinatário da prova, possui discricionariedade na avaliação de sua pertinência, o indeferimento de diligências probatórias deve vir acompanhado de fundamentação idônea, clara e coerente, sob pena de nulidade. A ausência de motivação suficiente, especialmente quando a negativa repercute diretamente na condenação ou na dosimetria da pena, configura cerceamento de defesa.
Cita-se, por oportuno, a vedação à atuação contraditória, consagrada no processo civil pela máxima venire contra factum proprium, a qual se aplica, inclusive, ao órgão jurisdicional, conforme dispõe o Enunciado nº 376 do Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC)3.
Nesse sentido, se no processo civil o comportamento contraditório é vedado, tal entendimento deve ser aplicado, com ainda mais rigor, ao processo penal, que tutela bens jurídicos de natureza existencial, como a liberdade. Não se pode tolerar, portanto, que o órgão julgador adote conduta incoerente e dela decorra consequência grave para o acusado, como uma condenação criminal.
A importância das provas técnicas nos crimes contra a ordem econômica e financeira
O problema se acentua quando estão em jogo provas de natureza técnica, como a perícia contábil ou financeira, frequentemente necessária em crimes que envolvem alegações de prejuízo patrimonial ou impacto econômico. Em tais casos, a aferição do valor do suposto dano ou mesmo do nexo de causalidade entre o cargo ocupado pelo indivíduo e a conduta imputada pode ser determinante tanto para a configuração do ilícito quanto para a fixação da sanção penal. Negar a realização de perícia ou diligências correlatas, mas utilizar a presunção de prejuízo e a ausência de contraprova para condenar ou exasperar a pena, subverte o devido processo legal e viola diretamente o direito de defesa.
Sobre a relevância da prova técnica, ressaltam Ada Pellegrini Grinover, Antônio Scarance e Antônio Magalhães Gomes4:
“A prova pericial constitui, na atualidade do processo criminal, um dos meios mais eficazes para esclarecimento dos fatos. O desenvolvimento das ciências em geral possibilitou maior utilização da prova técnica, tanto na demonstração da materialidade da infração penal, por meio do exame de corpo de delito, como na comprovação de outros dados relevantes à apuração da verdade.”
“O indeferimento pelo juiz de pedido de perícia relevante ocasiona cerceamento do direito à prova da acusação ou da defesa (v., retro, seção I deste capítulo). Proferida a sentença, se a parte prejudicada pleitear em apelação que seja declarada sua nulidade, insistindo na efetivação da perícia, o tribunal, reconhecendo a sua relevância, deverá anular a decisão e determinar que a perícia seja realizada.”
Assim, é imperioso reconhecer que o indeferimento de prova pericial possível e relevante, especialmente em crimes contra a ordem econômica e financeira, pode configurar cerceamento de defesa e ensejar a nulidade da sentença.
O direito à prova não se trata de mera formalidade processual, mas de uma exigência estrutural do contraditório. Sem a efetiva possibilidade de produzir provas, o exercício da defesa torna-se meramente ilusório5.
O que se verifica, portanto, é que a negativa de diligências probatórias não pode coexistir com decisões judiciais que, simultaneamente, utilizam a ausência dessas provas para sustentar a condenação e justificar a exasperação da pena-base. Tal contradição afronta a coerência mínima que se espera da fundamentação judicial e fere os direitos fundamentais do acusado.
Teoria da perda de uma chance probatória
À luz do exposto, destaca-se a pertinência da aplicação da chamada teoria da perda de uma chance probatória no processo penal. Originalmente desenvolvida no âmbito da responsabilidade civil, sua transposição para o processo penal no Brasil foi impulsionada por Alexandre Morais da Rosa e Fernanda Mambrini Rudolfo6.
Configura-se a perda de uma chance probatória quando o Estado, por omissão ou indeferimento injustificado, impede a produção de provas potencialmente relevantes ao exercício da ampla defesa. Nesses casos, a inércia estatal, seja pela recusa imotivada de diligências probatórias requeridas pela defesa, seja pela falta de iniciativa para produção de provas disponíveis, limita a possibilidade de o acusado demonstrar sua inocência ou, ao menos, instaurar dúvida razoável.
Não se trata de mera contrariedade a requerimentos defensivos, mas de verdadeira violação às garantias constitucionais do devido processo legal (art. 5º, LIV, CF), do contraditório e da ampla defesa (art. 5º, LV, CF) e da presunção de inocência (art. 5º, LVII, CF). Isso porque a possibilidade de produção probatória constitui direito-garantia do acusado, cuja observância se impõe de forma inderrogável.
Menciona-se que a avaliação da produção probatória pelos órgãos de persecução costuma estar associada à visão de túnel, orientada, sobretudo, pelo viés de confirmação: tendência humana de valorizar informações que confirmem hipóteses iniciais7. Assim, investigadores, acusadores e julgadores tendem a interpretar e produzir elementos que reforcem a ideia prévia de culpabilidade, subvertendo a lógica do processo penal, que é ou deveria ser estruturado na presunção de inocência.
Em outras palavras, o deferimento ou indeferimento da produção de determinadas provas, bem como a valoração daquelas já constantes dos autos, frequentemente é conduzido de modo a corroborar as teses acusatórias iniciais, ignorando ou desvalorizando elementos que apontem em sentido diverso.
Nesse cenário, a teoria da perda de uma chance probatória atua como verdadeiro remédio à visão de túnel, pois impõe aos órgãos de persecução penal o dever de conduzir as investigações e os processos de modo a garantir as condições materiais necessárias para o exercício pleno da defesa, e não somente para a confirmação da hipótese acusatória inicial.
Ante o exposto, ainda que a carga probatória seja integralmente da acusação, quando a prova requerida pela defesa é possível e razoável, os órgãos jurisdicionais devem viabilizar a sua produção, sob pena de violação aos direitos constitucionais garantidos ao acusado.
Conclusão
Conclui-se, destarte, que o indeferimento de provas essenciais, aliado à sua utilização indireta contra o réu, configura uma das mais graves formas de cerceamento de defesa. Não basta reconhecer que o magistrado é o destinatário da prova e, portanto, possui discricionariedade para acolher ou negar a produção probatória; é preciso exigir que a negativa seja devidamente fundamentada e, sobretudo, que não se converta em armadilha processual contra o acusado. Apenas assim será possível preservar a substância da presunção de inocência, da ampla defesa e do contraditório, pilares indispensáveis ao processo penal democrático.
[1] Bacharel em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Advogada e sócia do escritório Paulo Freitas Ribeiro Advogados Associados. Endereço Eletrônico: marianafranca@paulofreitasribeiro.adv.br.
[2] BRASIL. Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941. Institui o Código de Processo Penal. Art. 396-A: “Na resposta, o acusado poderá argüir preliminares e alegar tudo o que interesse à sua defesa, oferecer documentos e justificações, especificar as provas pretendidas e arrolar testemunhas, qualificando-as e requerendo sua intimação, quando necessário.” Art. 402: “Produzidas as provas, ao final da audiência, o Ministério Público, o querelante e o assistente e, a seguir, o acusado poderão requerer diligências cuja necessidade se origine de circunstâncias ou fatos apurados na instrução.” Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689.htm. Acesso em: 7 out. 2025.
[3] Enunciado nº 376: “A vedação do comportamento contraditório aplica-se ao órgão jurisdicional.” Aprovado no encontro do FPPC. Disponível em: https://diarioprocessual.com/wp-content/uploads/2020/05/enunciados-forum-permanente-processualistas-civis-fppc-2020-atualizado.pdf. Acesso em: 15 out. 2025.
[4] GRINOVER, Ada Pellegrini; FERNANDES, Antonio Scarance; GOMES FILHO, Antonio Magalhães. As Nulidades no Processo Penal, 10ª. edição, ver., atul. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 174 e 181.
[5] Salienta-se, assim, o direito à prova como aspecto de particular importância no quadro do contraditório, uma vez que a atividade probatória representa o momento central do processo: estritamente ligada à alegação e à indicação dos fatos, visa ela a possibilitar a demonstração da verdade, revestindo-se de particular relevância para o conteúdo do provimento jurisdicional. O concreto exercício da ação e da defesa fica essencialmente subordinado à efetiva possibilidade de se representar ao juiz a realidade do fato posto como fundamento das pretensões das partes, ou seja, de estas poderem servir-se das provas. A jurisprudência brasileira é tranquila nesse sentido, falando na imprescindibilidade de se conferirem a ambas as partes todos os recursos para o oferecimento da matéria probatória. E, se tal não ocorrer, fala a jurisprudência, genericamente, em cerceamento de defesa ou de acusação (GRINOVER, Ada Pellegrini; FERNANDES, Antonio Scarance; GOMES FILHO, Antonio Magalhães. As Nulidades no Processo Penal, 10ª. edição, ver., atul. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 145 e 146).
[6] ROSA, Alexandre Morais da; RUDOLFO, Fernanda Mambrini. A teoria da perda de uma chance probatória aplicada ao processo penal / The theory of loss of chance probative applied to criminal proceedings. Revista Brasileira de Direito, Passo Fundo, RS, Brasil, v. 13, n. 3, p. 455–471, 2017. DOI: 10.18256/2238-0604.2017.v13i3.2095. Disponível em: https://seer.atitus.edu.br/index.php/revistadedireito/article/view/2095. Acesso em: 7 nov. 2025.
[7] FINDLEY, Keith A. Tunnel Vision. In: CUTLER, B. (ed.). Conviction of the Innocent: Lessons from Psychological Research. Washington, DC: APA Press, 2010. (University of Wisconsin Legal Studies Research Paper, n. 1116). Disponível em: https://ssrn.com/abstract=1604658. Acesso em: 7 nov. 2025.

